VIAJAR DE aviao virou suplicio na vida moderna. Ja foi bem melhor, recordarao os saudosistas do tempo em que as passagens aereas custavam fortunas. Com a queda dos precos, o financiamento e a assim chamada globalizacao, o numero de voos e de passageiros aumentou de forma desproporcional a capacidade das instalacoes necessarias para acolhe-los.
Lotados, os aeroportos foram transformados em campos de concentracao da ansiedade humana. Embora a maioria dos voos ainda parta e chegue em horarios proximos aos previstos, os cancelamentos e os atrasos se tornaram tao frequentes que o espirito do viajante vive atormentado pela possibilidade de perder compromissos e de passar horas a espera em lugares apinhados de gente mal humorada.
Quando a Russia ainda era comunista, entrei num emporio em Moscou no qual havia uma fila para comprar pao, outra para a carne e outra para os demais generos alimenticios. Eram filas enormes; a da carne saia para a rua. Parece que os aeroportos do mundo inteiro adotaram a mesma estrategia: fila para o check-in, para passar pela seguranca, para o banheiro, para embarcar e ate para comprar, por preco exorbitante, um sanduiche com gosto de isopor.
A tensao da viagem ja se instala na fila do check-in, assim que o primeiro cidadao se poe a berrar com as mocinhas do atendimento. Nao se trata de ocorrencia eventual, mas obrigatoria; nao existe a menor possibilidade de obter um cartao de embarque sem ouvir os desaforos em serie que os exaltados e os prepotentes costumam despejar sobre elas.
Parece que a compra da passagem aerea confere ao usuario o direito psicanalitico de descontar na funcionaria da companhia todas as humilhacoes que os chefes o obrigaram a engolir, somadas as frustracoes profissionais e amorosas acumuladas pela vida inteira. Daria tudo para ver um desses arruaceiros de balcao diante de seus superiores hierarquicos.
Na fila da esteira para inspecionar a bagagem de mao a tensao atinge o pico. A tarefa de livrar-se do computador, do celular e dos demais objetos metalicos e feita a toque de caixa, como se todos estivessem prestes a perder o aviao. Nos paises que obrigam a descalcar os sapatos, ha que tornar a calca-los em pe, desequilibrados, em posicoes bizarras.
E a vergonha ao ouvir o alarme eletronico quando dispara ao passarmos? Todos nos olhando com ar de suspeita: seriamos terroristas de Bin Laden ou simples idiotas com moedas nos bolsos?
O tormento maior, no entanto, e o que nos aguarda nas salas de embarque, cheias de gente mal educada que urra no celular como se o assunto que discutem fosse do interesse de todos.
Quando, a duras penas, conseguimos uma cadeira para sentar, o alto-falante anuncia que, devido ao reposicionamento da aeronave, o portao foi mudado para outro, mais superlotado do que rodoviaria em vespera de carnaval.
Os avisos que chegam pelos alto-falantes constituem martirio a parte. Em lugares movimentados como Congonhas ou Brasilia eles se repetem sem um minuto de interrupcao. Uma sucessao de vozes masculinas e femininas que se esgoelam nos microfones como se nao confiassem nos avancos da eletronica. Nos concursos de admissao, as companhias aereas descartam os candidatos com voz de timbre agradavel?
Talvez para evitar essa gritaria enlouquecedora, em Manaus decidiram que todos os avisos seriam dados por uma unica pessoa. E uma voz de mulher, propositalmente entoada em imitacao a de uma locutora que fez carreira no aeroporto do Rio de Janeiro. E mais exasperante ainda: melosa, sensual, proferida em tom de cochicho no ouvido. E, pior, cada aviso e repetido em ingles e espanhol, se e que assim podemos dizer. Uma madrugada, depois de horas na sala de espera ouvindo os avisos ininterruptos de mulher tao insinuante, o musico Paulo Garfunkel confessou ter ficado praticamente apaixonado por ela.
Luiz Fernando Verissimo escreveu uma cronica na qual encontrava uma lampada magica. Pediu para que sua mala fosse a primeira a chegar na esteira rolante. O genio achou pouco, ele acrescentou: em todas as viagens.
Lembro sempre esse desejo quando estou espremido, em disputa acirrada por uma nesga de espaco para enxergar se minha mala finalmente aparece nas esteiras ridiculamente apertadas, dos aeroportos arcaicos que funcionam como porta de entrada em nosso pais.
Folha de São Paulo
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