PODEM SOBRAR PILOTOS
(publicado na revista Aero Magazine)
Corrida às
escolas de instrução de voo, recordes de emissão de brevês, queda do
crescimento do setor. Há risco de faltar assento para tantos candidatos a
comandantes
Falei outro
dia ao telefone com um candidato a piloto, interessado em mergulhar de
cabeça no mundo da aviação. Com dois filhos pequenos e se aproximando
dos 40 anos, ele está com problemas para proporcionar à família o
conforto que considera adequado. O rapaz me explicou que vê na aviação a
salvação de sua lavoura. Quer ser piloto! Para alcançar o objetivo,
planeja vender a casa onde mora e se desfazer das prestações (a perder
de vista) que ainda tem pela frente. Com o dinheiro, calcula, poderá
pagar o curso e viver razoavelmente bem até conseguir um bom emprego
como piloto. Avião ou helicóptero? Tanto faz, ele diz.
A origem
desse e de diversos sonhos semelhantes está relacionada ao crescimento
de dois dígitos que a aviação civil tem registrado nos últimos anos e na
premissa de que faltarão pilotos no país em poucos anos, conforme se
ouve no noticiário de modo sistemático. O consenso entre os aviadores
que atuam no mercado, porém, não condiz com a tese da escassez de
tripulantes propagada aos quatro ventos. Os resultados práticos até o
momento resumem-se a uma tentativa de reforma no Código Brasileiro de
Aeronáutica (CBA), que permitiria a "importação" de pilotos estrangeiros
por um período de cinco anos, e uma verdadeira corrida às entidades de
formação de pilotos. As principais delas, aliás, já enfrentam
dificuldade para agendar os voos de instrução. Outro fenômeno é o
acúmulo de intermináveis currículos nas caixas postais eletrônicas de
pilotos mais influentes, a espera de indicações que tendem a se
prolongar cada vez mais.
Sensacionalismo e retrocesso
Para o
comandante Rodrigo Duarte, presidente da Abraphe (Associação Brasileira
de Pilotos de Helicóptero), entidade da qual faço parte, o discurso de
que há (ou haverá) um déficit de pilotos, situação que dificultaria o
crescimento da aviação brasileira, tanto na aviação comercial como no
mercado de exploração de petróleo, é sensacionalista. Na opinião dele,
trazer pilotos estrangeiros para voar no Brasil pode garantir um
retrocesso enorme ao mercado de formação aeronáutica, que começou na
década de 1930 com Assis Chateaubriand, muito mais conhecido por sua
veia jornalística e por sua ligação com as artes. Ele criou a Campanha
Nacional da Aviação e envolveu no projeto as altas esferas da sociedade
da época. O resultado foi a criação de cerca de 400 aeroclubes por toda a
extensão do território nacional e a distribuição de mais de 2.000
aeronaves, o que garantiu, a partir de então, a condução desse nicho de
mercado altamente técnico por gente daqui. Manter aeronaves nacionais
sendo operadas por aviadores brasileiros é, no mínimo, uma questão de
respeito ao esforço do que tem sido feito ao longo dos anos para formar
nossos pilotos.
Quando
comecei a reunir informações para escrever este artigo, fui lembrado de
que há cerca de 600 aviadores brasileiros voando no exterior e que seria
uma questão de justiça permitir a entrada de estrangeiros por aqui
também. Mas a coisa não é o que parece ser. Basicamente dois motivos
levaram os brasileiros a buscar espaço em cabines de aviões de outras
nacionalidades. Diante dos colapsos de Varig, Vasp e Transbrasil,
aviadores qualificados perderam colocação nas empresas aéreas
brasileiras, o que contribuiu, e muito, para o êxodo nacional. A busca
por melhores condições, ou pela aventura de viver com outras culturas,
também contribuiu para a saída de tantos pilotos. O mais importante,
porém, é o fato de que esses aviadores só conseguiram espaço em países
que não se preocuparam em criar sua própria estrutura para formar
pilotos. Países que possuem essa estrutura costumam valorizá-la e só
permitem em seus cockpits cidadãos portadores de passaportes nacionais.
Por que teríamos que agir de forma diferente?
Emissão de licenças não para
A não ser
que haja uma boa carta em alguma manga, a possível mudança no CBA seria
inócua. Pelo menos é o que sugere um estudo da Boeing, que prevê até
2030 uma demanda de 460 mil novos e bem-preparados pilotos para atender
ao crescimento previsto na aviação em todo o mundo. Além disso, o
estardalhaço da mídia em torno da falta de pilotos rendeu bons
resultados. Em 2010, a Anac emitiu 1.917 licenças de PP (pilotos
privados), 410 delas de helicóptero. Para o caso de PC (pilotos
comerciais), que na teoria garante ao seu detentor o ingresso no mercado
de trabalho, o crescimento também foi considerável e atingiu a marca
inédita de 1.053 licenças, das quais 262 para pilotos comerciais de
helicóptero. Chama a atenção o fato de que, embora o número total de
helicópteros corresponda a praticamente 13% da frota nacional, as
escolas de formação de pilotos de helicóptero estão colocando no mercado
cerca de um quarto do total de pilotos comerciais. O número de pilotos
tanto de helicópteros quanto de avião suplanta, em muito, a quantidade
de aeronaves que desembarcam anualmente em nosso território, apontando
para um superávit de pilotos, situação que vai se agravar se levarmos em
conta que esses recordes de emissão de licenças foram extrapolados já
em meados de 2011.
O problema
principal não é a quantidade, mas a qualidade dos profissionais que
estão sendo preparados para conduzir nossas aeronaves. Um executivo de
uma companhia aérea brasileira, que pediu para não ser identificado,
desabafa: "O copiloto que é contratado por nós tem, muitas vezes,
inúmeras deficiências operacionais. É comum a preparação desse
profissional recém-contratado levar de oito a 12 meses até que
finalmente possa ocupar seu assento na aeronave".
A carteira de PC e as horas de voo
Embora a
licença de PC seja uma espécie de carteira de trabalho do aviador, ainda
não é suficiente para seu dono ser aceito no mercado. Dificilmente um
piloto recém-formado consegue seu lugar ao sol com menos de 500 horas de
voo. Daí a pergunta: como um piloto que se forma PC com 150 ou 200
horas de voo chegará ao número que as companhias aéreas consideram
ideal? Resposta: puxando faixa no litoral, voando para algum fazendeiro
ou ministrando instrução aérea. Mas como as horas voadas nessas
aeronaves podem ser úteis para um piloto que tem por objetivo comandar
um moderno jato comercial?
(parte 2)
Corrida às
escolas de instrução de voo, recordes de emissão de brevês, queda do
crescimento do setor. Há risco de faltar assento para tantos candidatos a
comandantes
Conversei
com Adalberto Febeliano, diretor de Relações Institucionais da Azul
Linhas Aéreas, a respeito. Ele me disse que concorda que a formação do
aviador brasileiro deve ser repensada e que a Azul procura minimizar
essa falha valorizando o aprendizado que o candidato a piloto inclui em
seu currículo além das horas voadas. Detalhes como a formação numa
escola de aviação que garanta padrões de qualidade elevados, curso
superior em aviação e experiência voando no exterior são exemplos de
itens que vão diferenciar currículos ante outros que simplesmente trazem
um razoável número de horas de voo. Diante da qualidade da atual
formação dos pilotos brasileiros, o executivo mostra-se prudente: "Esse
expressivo número de pilotos que estão se formando não garante
necessariamente que as vagas nos cockpits serão preenchidas a contento".
O dilema dos táxis-aéreos
Também
troquei ideias com o comandante Ronaldo Jenkins, diretor-técnico do Snea
(Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias). Para ele, contratar
pilotos estrangeiros está longe de ser uma solução. "Ao contrário, vamos
ter mais problemas, pois virão para cá principalmente pilotos de países
com uma estrutura de formação menos desenvolvida do que a nossa. Além
disso, teremos dificuldade de comprovar a experiência de voo deles",
sustenta. O diretor do Snea acredita, ainda, que não há falta de pilotos
no mercado de aviação regular. "Com o dólar baixo, muitos brasileiros
que voavam lá fora estão voltando. E o crescimento do transporte aéreo
do país também já dá sinais de arrefecimento".
Jenkins
reafirma, porém, que existem, sim, problemas pontuais de falta de piloto
no transporte aéreo de pequeno porte, principalmente nas empresas de
táxi-aéreo. "Não é que vão faltar pilotos, já estão faltando, mas a
solução não é importar recursos humanos. Temos de modernizar a
instrução, a formação de nossos aviadores deve ser direcionada e
adequada às funções que vão exercer". Segundo ele, também não dá para
dizer que vão sobrar pilotos, pois o crescimento, embora em queda, ainda
será considerável nos próximos anos. "Agora, não vejo problemas para os
postos de comandante. Temos copilotos suficientemente experientes para
suprir a demanda futura do país. E, repito, o que precisamos é melhorar a
qualidade do ensino".
Piloto-estagiário, por que não?
Parece claro
que a ideia de Assis Chateaubriand foi ótima, só precisa ser ajustada
para a nova realidade da aviação. Uma boa proposta veio da Abraphe, que
sugeriu à Anac a criação do estagiário, figura muito comum em diversas
profissões, mas que não existe por enquanto na aviação. O
piloto-estagiário seria fundamental para criar uma ponte entre a
formação em uma instituição de ensino e o primeiro emprego.
Evidentemente, esse profissional não poderia ser confundido com o
copiloto, que é um aviador com funções muito bem-definidas, capaz de
substituir o comandante em emergências.
Gelson
Fochesato, presidente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, concorda com
a tese de que a formação voltada para as atuais necessidades do mercado
fará muito bem à aviação brasileira, mas considera que os pilotos
jamais serão óbice para crescimento do setor. "O gargalo não são os
pilotos. O gargalo é a infraestrutura aeroportuária e o nosso
gerenciamento de espaço aéreo. Há de se fazer investimentos nesses
setores para que a aviação brasileira possa continuar a crescer",
defende.
O diretor de
Operações de Aeronaves da Anac, Carlos Eduardo Pellegrino, mostra-se
preocupado com o aumento da demanda por licenças - que se tornaram,
aliás, mais um gargalo da aviação. Mas prefere manter-se isento em
relação à polêmica da falta ou não de pilotos. O que Pellegrino assente é
que a qualidade da formação precisa melhorar: "Voar em um ambiente cada
vez mais denso de aeronaves, interagir com uma tecnologia em constante
evolução e gerenciar tanto sistemas como pessoas exigem do aviador
competências que extrapolam a simples habilidade motora para atuar bem
nos comandos de uma aeronave".
Solução existe há décadas
Diante das
evidências, concluo que a deficiência do sistema está menos no número de
aviadores e mais na qualidade desses profissionais. E a mágica da
solução está debaixo dos nossos narizes: precisamos readequar e
aproveitar melhor a enorme infraestrutura existente, disponível desde a
década de 30, para que pilotos brasileiros, formados aqui, continuem
voando nossas aeronaves e possam manter aquecido o mercado nacional.
Sobre o
candidato a piloto do início deste artigo, confesso que fiquei sem saber
exatamente o que dizer. Até porque, embora a carreira de aviador seja
uma das mais bonitas que conheço, e a recomende para qualquer um que se
interesse por ela, com a quantidade de gente correndo atrás do mesmo
objetivo, penso que não haverá lugar para todos os que almejam ocupar os
assentos 1P e 2P das nossas aeronaves.
Ruy Flemming é piloto de aviões e helicópteros executivos e diretor da Abraphe
Situação crítica nas plataformas de petróleo
O principal
problema em torno da falta de pilotos ocorre nas plataformas de petróleo
da costa brasileira. Com a descoberta do pré-sal, a demanda cresceu
além da capacidade de ajuste das empresas de táxi-aéreo que atendem ao
mercado offshore e o que se vê é uma situação delicada em relação à mão
de obra. "Somente a Petrobras tem hoje cerca de 100 helicópteros em
operação nas plataformas e deve chegar a 200 até 2020", contabiliza
Fernando Alberto dos Santos, superintendente do Sneta (Sindicato
Nacional das Empresas de Táxi-Áereo). "Para cada aeronave, precisamos de
cinco a seis tripulantes, já que temos escalas de 15 dias de trabalho
por 15 de folga, além das férias e do período de simulador no exterior".
A ideia da
alteração da lei para permitir a contratação de pilotos estrangeiros em
caráter temporário nasceu desse impasse. "No fundo, é uma solução que
não interessa às empresas, porque manter pilotos estrangeiros no Brasil
gera dificuldades de adaptação. Mas é uma opção, temporária, diante do
problema gravíssimo que temos de falta de mão de obra. Tem empresas que
deixaram de participar de licitações por esse motivo", afirma Santos. O
superintendente do Sneta reconhece que existem pilotos capazes de suprir
a demanda futura nas plataformas, tanto os recém-licenciados PC como
aqueles que já voaram off-shore e hoje estão na aviação executiva ou no
exterior. "O problema é que os mais novos precisam de tempo e
investimento para adquirir a proficiência necessária para voar sobre o
mar e os patamares salariais já atingiram níveis críticos de viabilidade
do negócio", pondera Santos. Segundo ele, um piloto de equipamentos de
médio porte recebe de R$ 15 a 17 mil enquanto o de aeronaves maiores
pode ganhar de R$ 22 a 25 mil. "Estamos nos limites de salários. As
empresas petroleiras têm forte poder de barganha e as margens dos
táxis-aéreos são baixas com riscos altos. Além disso, nem sempre
divulgam prévias de demanda futura de helicópteros para nos
prepararmos".
E qual é a
solução? Investir na formação dos novos pilotos. Hoje, o Sneta trabalha
junto à Petrobras e à Anac para conseguir recursos do Prominp (Programa
de Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás) e acelerar a
formação de tripulantes. "As empresas hoje bancam essa formação, mas é
uma iniciativa tímida perto do que é necessário. Para tornar um piloto
comercial habilitado para voar off-shore, com segurança, é necessário
cerca de um ano de preparação, o que requer alto investimento. E sem a
ajuda da indústria do petróleo fica complicado".
DIRETO DA PISTA
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